Sinais de alerta do ‘pai’ dos ambientalistas
Por Bettina Barros | De São Paulo
Nogueira Neto, em meio à sua floresta particular: equívocos políticos põem interesses privados à frente dos da nação
Era uma tarde de domingo de maio, pouco depois do almoço, quando o telefone tocou. A então senadora Marina Silva tinha urgência na voz. Pedia ao interlocutor em São Paulo que fosse imediatamente para Brasília. Com a dificuldade em andar amenizada pela ajuda da bengala, Paulo Nogueira Neto aprontou-se, foi ao Aeroporto de Viracopos, em Campinas, e comprou a passagem aérea. À noite já estava na capital federal.
Primeiro foram encontros com representantes graduados do Congresso. Em seguida, o grupo de ex-ministros do Meio Ambiente reuniu-se com a presidente Dilma Rousseff. A movimentação rápida e silenciosa tentava sensibilizar a presidente em relação às florestas, numa das últimas tentativas de alterar pontos polêmicos do texto final do Código Florestal que seria votado no dia seguinte pela Câmara dos Deputados. “O que querem fazer hoje no Brasil é um retrocesso. É rasgar grandes conquistas”, diz Paulo Nogueira.
A frase soa inevitavelmente melancólica para quem ouve esse que é considerado o “pai de todos” os ambientalistas brasileiros. Dr. Paulo, como é respeitosamente chamado por seus discípulos, vê à sua frente o desmoronamento de décadas de preservação, uma história que ele ajudou a criar. Primeiro secretário do Meio Ambiente do país com status de ministro, Paulo Nogueira Neto estabeleceu em seus doze anos de governo os primeiros 3,2 milhões de hectares de florestas protegidas por lei no Brasil e concebeu o Conselho Nacional do Meio Ambiente – o Conama, o “único conselho deliberativo desta República”, como gosta de lembrar Marina Silva. Isso em plenos anos 70, período de chumbo da política brasileira.
“As cúpulas militares não entendiam nada de meio ambiente. Mas confiavam em mim, sobretudo o [João] Figueiredo”
Aos 89 anos e com uma imagem pública invejável, ele vê a política sendo feita de forma equivocada – interesses privados e partidários à frente de “interesses maiores da nação”.
Mas não perde a esperança de as coisas se ajeitarem. “As mudanças no Código foram aprovadas por fatores políticos que não dependeram da nossa vontade. Foi uma disputa política do Legislativo com a presidente Dilma. Mas não acredito que o Senado aprovará do modo que está”, diz dr. Paulo.
Como se sabe, o novo Código Florestal passou na Câmara dos Deputados com pontos que preocupam os ambientalistas. A anistia a produtores rurais que desmataram até julho de 2008 é um deles. O direito dos Estados de legislar sobre o ambiente é outro. “Isso será um desastre. Já se fala em um desmatamento do tamanho do Paraná”. E esclarece: “Não sou contra reformas, desde que sejam baseadas em técnica”.
Se diz não perder o ânimo, o paulistano Paulo Nogueira Neto, fruto de uma linhagem de políticos e juristas, tampouco perde o gosto pelas discussões estratégicas envolvendo o seu assunto predileto. Apesar do andar lento e da dor constante nas costas (“o grande problema do homem é ser bípede”), quase toda semana segue a Brasília. Reúne-se no Conama, participa de encontros, assiste a debates no Congresso e prestigia ONGs. Quem esteve presente no histórico dia da cisão do Ibama lembra do alto brado de “Viva!” solto por dr. Paulo após votação que criou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, em meados de 2007.
A proposta atraiu críticas dentro do próprio governo, mas para ele não havia por que relutar. O fato era que o Ibama tinha se tornado grande demais para administrar tudo sozinho. “Estavam dando muito pouca atenção às áreas de conservação ambiental. Era necessário dividi-lo”, argumenta Nogueira Neto, num falar à vontade em meio às suas árvores majestosas, escolhidas décadas atrás para emoldurar o terreno de quatro mil metros quadrados de sua residência em São Paulo.
Desenhada pelo arquiteto Osvaldo Bratke nos anos 50, os traços modernos privilegiam a integração com a natureza ao seu redor, e guardam não só essa porção exclusiva de Mata Atlântica mas histórias esquecidas do Brasil. Guardam também livros – centenas de livros de biologia e ecologia – e uma mesa de condecorações recebidas ao longo e depois da carreira pública, sombreadas pelas oito pinturas enfileiradas de Di Cavalcanti expostas na sala de estar (“séries limitadas que Di vendia, sem tanto valor assim”, apressa-se em explicar).
A de que ele mais gosta parece ser o Cândido Portinari à direita. O quadro retrata o momento da retirada do mel da colmeia, a maior de todas as suas paixões. Os estudos sobre abelhas indígenas brasileiras marcaram seu trabalho científico e transformaram um advogado em um renomado ambientalista.
Portinari era amigo de seu irmão, José Bonifácio Coutinho Nogueira, que foi secretário paulista da Agricultura e depois da Educação. Mas não entendia nada de abelhas. Nogueira Neto conta, ainda surpreso, – “como ele não sabia retratar a retirada do mel?” – que teve de emprestar uma fotografia para que o pintor, hoje um dos mais conhecidos do Brasil, fizesse o quadro exibido nesta sala por onde passaram tantas personalidades da política, das artes e das ciências.
A leva de ambientalistas mais jovens não frequentou esse universo privilegiado, mas se formou e esmerou nos ensinamentos do ambientalista.
Marina Silva conheceu o seu trabalho ainda no Acre. Tasso Azevedo, primeiro diretor do Serviço Florestal Brasileiro, ouviu falar em Paulo Nogueira Neto pela primeira vez na faculdade de engenharia florestal. Mário Mantovani e a trupe verde da SOS Mata Atlântica já o reverenciavam quando o convidaram para ajudar a formar a ONG que despontava, duas décadas atrás.
A aproximação mais curiosa, no entanto, talvez tenha sido a do ex-secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente de Marina, o então adolescente João Paulo Capobianco. “Eu jamais imaginaria que aquele menino viraria isso”, ri Nogueira Neto.
Capobianco, estudante de segundo grau, procurou-o pedindo ajuda: após herdar a fazenda de café do avô recém-falecido, na divisa de Minas Gerais com São Paulo, parte da sua família queria se desfazer de dois mil hectares de floresta nativa que havia resistido à agricultura. “Meu avô viveu até os 98 anos protegendo aquela mata. Foi o único proprietário da região que não desmatou, enquanto todos os outros vendiam a madeira como forma de sobreviver à crise de 1929″, conta Capobianco. “Quando morreu, veio a partilha, e a floresta ficou em risco”. Uma professora sugeriu: por que não tentar algo com o dr. Paulo?
“Liguei para ele. No dia seguinte tinha um monte de policiais na fazenda. Foi uma confusão danada, mas eu ganhei a preservação da floresta e arrumei alguns primos que ficaram meus inimigos até hoje”.
Paulo Nogueira Neto nasceu ambientalista, mas só descobriu essa vocação numa idade bem mais avançada. Por influência do histórico familiar em ciências humanas, a primeira opção profissional foi Direito na Universidade de São Paulo (USP). Ele se formou, mas a paixão por abelhas o fez enveredar pelo mundo da biologia. Das abelhas para os insetos, dos insetos para ecossistemas, dos ecossistemas para o clima. Voltou à USP para estudar História Natural. Nogueira Neto virou um cientista e fundou, na mesma universidade, o Departamento de Ecologia. Só não abriu mão da carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), diz.
O convite para assumir o primeiro cargo federal destinado ao ambiente veio em 1974, dois anos após Henrique Brandão, então vice-ministro do Interior do governo Ernesto Geisel, chefiar a delegação brasileira do Itamaraty para a Conferência de Estocolmo, a primeira reunião mundial a tentar preservar o ambiente.
Brandão voltou para Brasília incomodado. Dizia que o Brasil precisava de um decreto federal de base para uma futura pasta ambiental – todos os países importantes já tinham isso. Chamou Nogueira Neto para uma opinião sobre o rascunho. Ele leu. E “lascou” a proposta. “Fiz várias críticas. Aquilo não previa nem multas ambientais!”
A espinafrada com conteúdo deve ter impressionado o ministro. Mas feito o convite para assumir o posto criado para ele, dr. Paulo titubeou. A palavra final seria dada, como sempre, por Lúcia, sua companheira de vida. “Só iria se ela concordasse em se mudar para Brasília”, diz.
Nogueira Neto tinha base jurídica, formação acadêmica e a paixão inerente aos amantes da natureza, o que já lhe garantia parte do sucesso na empreitada federal. Mas era pouco dado a rodas sociais, ao “networking” necessário para fazer política.
Quem era boa nisso era Lúcia. “Ela fazia o meio de campo que estreitou os meus laços com os diplomatas”, lembra ele. Exímia jogadora de bridge, Lúcia era convidada para praticar o jogo de cartas da moda com as esposas dos diplomatas estrangeiros instalados em Brasília. Dr. Paulo ia junto e aproveitava a oportunidade para emplacar conversas sobre o estado do planeta. Graças a essas visitas informais, fez várias viagens ao exterior para conhecer governos e expor a situação ambiental do Brasil. Sempre levava Lúcia – “pagando o bilhete aéreo dela”, frisa.
Mas o glamour da diplomacia estava a anos-luz da simplicidade das três salas e cinco funcionários que Nogueira Neto tinha para cuidar da área ambiental. A missão era dura.
O secretário com status de ministro viveu o choque político de criar unidades federais protegidas e a chegada do homem urbano à grande floresta, após a abertura da rodovia Transamazônica. O “Brasil Grande” galopava, os recursos financeiros eram poucos e Nogueira Neto, afinal, falava uma língua praticamente desconhecida dos generais. Ecossistemas. Biodiversidade. A defesa de coisas tão pouco palpáveis devia ser vista como mera platitude de um apaixonado por abelhas. E o Brasil militar tinha assuntos bem mais importantes a tratar.
Em uma das passagens de seu livro de relatos dos tempos no governo federal, dr. Paulo desabafa: “Me sinto exausto. O serviço é ininterrupto, pesado e tensionante. Mas me fascina”.
Ele chegou a Brasília não por apadrinhamento político, mas pela profunda compreensão da natureza ao seu redor – inclusive, percebeu-se depois, da natureza humana. Talvez por isso tenha atravessado incólume a dois governos, primeiro Geisel e depois de João Figueiredo, e emplacou as suas vitórias.
Bater de frente, dr. Paulo não batia. Mas ninguém diz que deixou de defender a causa por conta dos obstáculos do caminho. De certa forma, diz ele, era mais fácil trabalhar naquele tempo. “As cúpulas dos governos militares não entendiam nada de meio ambiente. Mas confiavam em mim, sobretudo o Figueiredo”. Além disso, “a derrubada da Amazônia não era nada em comparação a hoje”.
Convidado em duas ocasiões a filiar-se ao partido político do governo, a Arena, preferiu congregar as pessoas. Ganhou a confiança dos dois lados.
Passou pelo menos uma vez pelo desafio de segurar a rédea da corrupção dentro da sua pasta, a Secretaria de Meio Ambiente. Quando desconfiou que universidades contratadas para a gestão das áreas de conservação ambiental poderiam estar desviando recursos, ele diz ter agido rápido. Pediu prestação de contas e a abertura de uma sindicância para apurar esses convênios.
Para ele, a corrupção, só ocorre se a liderança permite. “Quando o chefe é sério, a instituição toda fica séria também”, diz dr. Paulo, pai de três, avô de seis e bisavô de cinco.
Quando deixou o governo, em 1985, o seu ativismo não arrefeceu. Nos anos seguintes, participou da criação de fundações, ganhou prêmios e homenagens. Em 1987, dr. Paulo representou o Brasil na Comissão Brundtland, que resultou no relatório intitulado “Nosso Futuro Comum” e cunhou a expressão desenvolvimento sustentável.
Ícone de uma geração de ambientalistas, ele tem sido um braço invisível de apoio para quem passa pelo Ministério do Meio Ambiente. “O professor sempre me apoiou, apesar das críticas pesadas às medidas para defender as florestas”, diz Marina Silva, que estava em férias quando concedeu uma entrevista ao Valor. “Quem se negaria a falar sobre ele? Dr. Paulo é o pai de todos nós”.
Se nos anos 70 os interessados em ambiente cabiam em uma Kombi, como falava-se na época, hoje são certamente muito mais. O que Paulo Nogueira Neto fez, então, deve ter valido a pena.
Do site de Marcelo de Souza
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