Permitam-me
fazer uma coisa já meio fora de moda. Irei comentar passo a passo a coluna de
hoje (sábado) de Miriam Leitão, no jornal O Globo. Ela critica a presidente
Dilma por estar presente em evento de seu próprio partido no qual se criticou
duramente o julgamento da Ação Penal 470. O mensalão é um ponto de honra
para as Organizações Globo (e, sobretudo, para o jornal Globo). Aliás, a Globo
é o principal sustentáculo dessa farsa. Por isso mesmo a empresa sabe que, se
ela ruir, causará grande prejuízo de imagem à Globo. Mas vamos à Miriam. O
texto dela vai em negrito, o meu em fonte normal.
*
Dilma
tomou partido
Por
Miriam Leitão, no Globo.
Quando a
presidente da República participa de um evento em que se acusa a cúpula do
Judiciário de manipulação, e de ter realizado um julgamento de exceção, está
enfraquecendo a democracia brasileira. Foi o que a presidente Dilma fez. O que
ela não disse explicitamente, o ex-presidente Lula o fez. O que ela demonstrou
no 5º Congresso do PT, por ação ou omissão, é grave.
O
raciocínio de Miriam inicia com uma falha estrutural. Ela não infere que, se o
judiciário manipulou e realizou um julgamento de exceção, não é Dilma, nem um
evento partidário, que está enfraquecendo a democracia. É o judiciário. E foi
isso justamente o que aconteceu.
Dilma
sabia o que seria a abertura do 5º Congresso do seu partido. Sabia que lá defenderiam
os condenados do mensalão. Ao mesmo tempo, como chefe do Poder Executivo, ela
não pode participar de um ato em que a Justiça brasileira está sob ataque. O
Supremo Tribunal Federal cumpriu todo o devido processo legal. Dilma consentiu
— pelo silêncio e pela presença — com as acusações ao Tribunal. Ela é militante
do PT e é a candidata. A situação era delicada, mas ela só poderia participar
de um evento sóbrio em que não ocorresse o que ocorreu.
Bem, é
claro que Dilma sabia que haveriam críticas ao julgamento da Ação Penal 470.
Ela não vive no mundo da lua. Se a própria Miriam Leitão saísse de seu
circuitozinho global, e transitasse por outros meios, veria que a revolta
contra os desmandos do STF há muito deixou de ser uma questão meramente partidária.
É hoje uma questão jurídica, política e ética. O STF chancelou um golpe, com
base em mentiras, sob forte pressão dos grandes meios de comunicação, liderados
pela Globo. Quem atacou a Justiça não foram os militantes do PT, muito menos
Dilma. Quem assediou o STF foi uma grande mídia convertida em partido político.
Quem desmoralizou o STF foram ministros rendidos à sua própria covardia perante
a pressão de uma imprensa com longo histórico de golpes contra a democracia.
O
presidente Lula, como é de seu feitio, fez o que disse que não faria e acusou o
julgamento de ter sido resultado da “maior campanha de difamação”. Dilma pensa
que se protegeu atrás de afirmações indiretas como a de que os petistas têm
“couro duro” ou o partido está em “momentos difíceis”. Pensava que ficara em
cima do muro, mas estava tomando partido.
A chefe
do executivo de um governo democrático só pode ir para uma reunião de
correligionários em que o Poder Judiciário é atacado se for para defendê-lo.
Seu silêncio a coloca do lado dos que acusaram o processo de ser de exceção.
Ela sabe bem a diferença.
O carisma
de Lula vem de sua sensibilidade em relação às pessoas, de um lado, e sua
argúcia em relação ao processo político, de outro. Lula entendeu, há tempos,
que o mensalão foi uma farsa construída para derrubar seu governo; e quando
isso não foi possível, transformou-se num instrumento de vingança para
constrangê-lo. Os erros e crimes que ocorreram foram todos admitidos. Mas a
mídia não queria saber de verdades. Não queria saber de caixa 2. Não queria
saber de desculpas. Ela queria inventar a sua própria história. A Globo queria
uma novela. E a criou.
Concordo
que a presidente deve defender o poder judiciário, mas desde que este não
extrapole suas funções. O STF transformou-se num pequeno parlamento,
ultrapolitizado, e o que vimos na julgamento da Ação Penal 470 não foi um
julgamento, mas uma espécie de Comissão Parlamentar de Inquérito onde apenas os
acusadores falavam. E onde qualquer mínima discordância resultava em massacre
midiático no dia seguinte. Vide o caso do ministro Ricardo Lewandowski, que era
assacado impiedosamente nos jornais por causa de tímidas divergências pontuais
com as teses defendidas pelo relator do processo, Joaquim Barbosa.
Seus
amigos e companheiros José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, João Paulo
Cunha e aliados de outros partidos foram investigados pelo Ministério Público e
denunciados. O STF aceitou a denúncia e em sete anos de tramitação do processo
deu amplo direito de defesa aos réus e analisa os recursos. Os juízes foram em
sua maioria escolhidos por ela ou por seu antecessor. Houve troca de juízes mas
não de juízo da maior corte do país. Eles foram considerados culpados.
Não é
verdade que foi dado “amplo direito de defesa aos réus”. Provas foram
deliberadamente ocultadas com vistas a prejudicar a defesa dos réus. As
informações vazaram, Miriam. Felizmente, existe vida fora da Globo. As pessoas
puderam ler reportagens do Raimundo Pereira em sua revista, a Retrato do
Brasil. As pessoas tiveram acesso a documentos, vídeos, provas. Merval Pereira
pode ser sido endeusado por alguns setores sociais, levado à Academia
Brasileira de Letras, bajulado por ministros do Supremo como Gilmar Mendes e
Ayres Brito. Mas havia gente do outro lado da rua observando a cena com uma
expressão estranha no rosto, Miriam. Estavam em dúvida. Estavam desconfiados
que havia confete demais naquele julgamento. E quando foram se informar,
descobriram seus terríveis vícios.
O
julgamento foi feito com base nas leis e na Constituição. Os militantes podem
gritar qualquer coisa, mas o grave é a presidente estar ali, consentir pelo
silêncio ou por menções indiretas para serem interpretadas pelos militantes
como concordância. Enquanto exercer o mandato ela não é apenas a Dilma, ela
representa o Poder Executivo.
Miriam,
você conhece a história. Você sabe que quase todo golpe político acontece “com
base nas leis e na Constituição”. Se você ler as edições de abril de 1964 do
jornal onde você escreve, verá que o golpe de 64 também aconteceu “com base nas
leis e na Constituição”. Só que não. Porque assim como um corpo sem espírito
não é mais do que uma casca vazia, decisões políticas ou judiciais feitas com
má fé também não significam nada.
Dilma
pode sentir solidariedade pelos companheiros. É natural. Mas não pode
aquiescer, por silêncio ou meias palavras, com os que acusam a Justiça do
governo democrático. Ela estar nesse desagravo é um ato com significado
institucional.
É sim,
Miriam. É um ato com significado institucional. Mas não o sentido que você quer
dar. O seu problema é que você quer fugir do que você é: você também é
representante de um poder institucional, talvez um dos mais poderosos de todos.
A Globo se tornou uma instituição política, da qual você é uma espécie de
embaixadora. A presença da Dilma num evento do PT em que se acusa o STF de ter
realizado um julgamento de exceção causou profundo constrangimento à Globo,
porque, de certa forma, é uma derrota política. Por mais que a Globo tenha
tentado, em alguns casos até com sucesso, criar uma imagem da presidenta
totalmente descolada de suas origens partidárias e ideológicas, pintando-a como
uma estadista fria, tecnocrática, fiel a um modelo pré-fabricado sobre como
deve se portar um presidente da república (coisa que nunca conseguiram fazer com
Lula, por exemplo). Por mais que a Globo tenha se arriscado nessa tentativa,
porque acabou conferindo enorme popularidade – temporária – à Dilma junto a
setores da classe média com pouca ou nenhuma simpatia pelo partido da
presidente. Enfim, por mais que tenha feito tudo isso, a Globo não conseguiu
realizar a alquimia final, definitiva, de fazer Dilma se desligar de seu
partido e passar para o o lado deles. Dilma ainda é uma militante do PT, uma
pessoa de esquerda, uma mulher cheia de brios e que, mais dia menos dia, pode
querer tomar algumas atitudes contra os arbítrios da mídia. A mídia tem medo
deste dia. Tem pavor. Mas tanto a mídia quanto Dilma sabem que, se este dia
vier, estaremos ao lado da presidenta e da democracia!
Roberto
Marinho em três tempos: com Costa e Silva, com Figueiredo e com ACM.
A
democracia passou por várias rupturas ao longo da história republicana. É
conquista recente e que pertence ao povo brasileiro. Não pode ser ameaçada por
atitudes que solapem a confiança nas instituições, e por interpretações diante
das quais a presidente se cala e, portanto, consente.
Ahá! Bem
lembrado, Miriam! A democracia passou por várias rupturas… Em 2014, teremos uma
importante efeméride. 50 anos de golpe de Estado! As edições do jornal O Globo
naquele fatídico ano de 1964 agora estão disponíveis na internet. A democracia
é uma conquista recente que pertence ao povo brasileiro, mas a conquistamos à
fórceps, e contra a Globo! A Globo lutou, até o fim, contra a democracia e até
hoje é uma instituição profundamente antidemocrática. O julgamento de exceção
que assistimos no STF foi mais um golpe contra a democracia, um dos mais
pérfidos. Mas assim como em 1964, a Globo procurou sempre manipular as
palavras. Nos dias seguintes ao golpe de Estado, o Globo apenas repetia que a
democracia brasileira tinha sido salva das mãos de comunistas, sindicalistas,
ou seja, dos mesmos mensaleiros que hoje a Globo conseguiu pôr na cadeia, após
uma das campanhas mais agressivas, espúrias e sensacionalistas da história da
imprensa brasileira.
(Não, não
foi um erro, foi um golpe. Com o qual ganharam muito, muito e muito dinheiro.)
Dilma
tentou manter uma posição ambígua até agora. Mas aquele era um local em que a
militância gritaria as palavras de ordem oficiais do partido. Rui Falcão,
presidente do PT, disse que os mensaleiros “foram condenados sem provas num
processo nitidamente político”.
Pois é,
Miriam. Rui Falcão disse isso, e Rui Falcão é o presidente do PT e comandante
geral da campanha pela reeleição da presidente Dilma. Então prepare-se. Vem
chumbo grosso por aí. Vocês, do Globo, foram sádicos, golpistas e desonestos.
Manipularam informações. Mentiram. Omitiram. Distorceram. Protegeram corruptos.
Mesmo as suas críticas à figuras como Renan Calheiros e Henrique Alves sempre
foram hipócritas e falsas, porque nunca disseram ao público de onde eles tiram
o poder que eles têm: cadeias de televisão, onde distribuem o sinal da Globo em
seus estados.
O nada a
dizer diante disso, por parte da presidente, diz muito. O Supremo Tribunal
Federal se debruçou com abundância de tempo sobre as provas, julgou e condenou.
Dilma pode não ter gostado do resultado, pode discordar das penas pessoalmente,
mas enquanto exercer o cargo não existe o “pessoalmente” em assuntos
institucionais. Militantes podem atacar o Supremo. Mas a presidente da
República, não. Sua presença naquele ato é lamentável e enfraquece a
democracia.
Tomara
que sim, Miriam. Oxalá Dilma tome uma posição mais assertiva sobre o julgamento
do mensalão, sobretudo porque ele pode ser um balão de ensaio para aplicar um
golpe contra ela mesma. Se o Ministério Público e o STF conseguiram condenar
réus sem provas, apenas “porque a literatura assim me permite”, então eles
conseguem pegar qualquer pessoa. É evidente que esse é o risco supremo da
democracia brasileira. O risco máximo. Você manipular a corte suprema para
derrubar um adversário político. É tão óbvio. É tão fácil. Chantagear onze
ministros, para a grande mídia, com o poder e o dinheiro que ela tem, é a coisa
mais fácil do mundo.
A
presença de Dilma num ato em que se criticou o julgamento de exceção é um
alívio para aqueles que defendem a democracia. Porque ela é a presidente eleita
pelo voto de milhões de brasileiros. A gente votou em Dilma, não em ministros
do STF. Ela tem direito a fazer política. Os ministros do STF não têm. Vivemos
um momento muito estranho, em que a imprensa acha normal juízes fazerem
discursos políticos e considera a mera presença da presidente no congresso de
seu próprio partido uma agressão à democracia. A Globo enxerga a democracia de
cabeça para baixo. Tudo que para ela é uma ameaça à democracia, na verdade é o
que a democracia tem de mais autêntico e pujante; e tudo o que ela considera
como democrático, na verdade é golpe.
Se a
Miriam já se esqueceu da peculiar visão de democracia do jornal O Globo, nós
não. Não esqueceremos. Não perdoaremos. Jamais.
Fonte: O Cafezinho
Nenhum comentário:
Postar um comentário